quinta-feira, 5 de abril de 2012

A TRAJETÓRIA DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: UMA BREVE INTERPRETAÇÃO

ROBERTO LOBATO CORRÊA PPGG/UFRJ

Resumo: Este estudo focaliza a trajetória da geografia brasileira de 1934 ao final da primeira década do século XXI. Está organizado em três partes, complementares entre si. A primeira aborda as continuidades e descontinuidades na geografia brasileira, relativas aos periódicos, núcleos de pesquisa, temas e sub-temas. A segunda discute a crescente complexificação de paradigmas na geografia brasileira que, nascida sob influência francesa, torna-se progressivamente mais complexa, plural. Os anos de 1969, 1978 e do início da década de 1990 constituem marcos temporais dessa complexificação. A terceira apresenta a geografia da geografia brasileira a partir da difusão da geografia acadêmica pelo espaço brasileiro. É possível construir um mapa da geografia produzida no Brasil. O texto termina com proposições de pesquisa sobre a geografia brasileira.

Palavras-Chave: continuidades, descontinuidades, paradigmas, difusão, centros e relações.

A trajetória da geografia brasileira pode ser analisada de diversos modos, mas qualquer que seja será sempre seletiva, sendo apresentados e discutidos aqueles pontos julgados pertinentes por aquele que a apresenta. A interpretação de um processo ou objeto é, em realidade, uma construção. Entre os modos possíveis há um que é rejeitado. Trata-se da narrativa cronológica, na qual são apresentados uma sucessão de eventos, instituições, autores, paradigmas, práticas e suas relações, que ocorreram entre 1934, quando se dá a institucionalização da geografia, e 2010. A rejeição se dá porque a narrativa cronológica pode levar a uma visão teleológica, na qual são os fatos passados que determinam os fatos seguintes e assim por diante, negando a relativa autonomia de cada presente. No texto que se segue a trajetória da geografia brasileira será apresentada segundo três eixos não independentes entre si, cada um focalizando um angulo dessa trajetória, ângulos avaliados como importantes para se compreender pontos significativos dessa trajetória. Os três eixos são os seguintes: continuidades e descontinuidades de matrizes, procedimentos operacionais e temas; crescente complexidade paradigmática; e a geografia da geografia brasileira. Diferenças de percursos, acumulação de conhecimentos e o olhar geográfico são crenças e modo de ver que justificam os três mencionados eixos. Nas considerações finais algumas sugestões para investigação serão enunciadas, muitas delas diretamente vinculadas aos pontos aqui tratados.

CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES

A trajetória de um dado campo do conhecimento científico não é descrita por meio de uma linha regular e ascendente, mas por meio de linha irregular, que pode apresentar continuidades, descontinuidades, podendo desaparecer. A trajetória, por outro lado, pode ser longa ou curta, ou ter momentos de ascensão e momentos descendentes. Isto se verifica não apenas ao se considerar um dado campo do conhecimento, mas também face aos seus sub-campos.A trajetória variável, não previsível de antemão, deriva de uma combinação de condições externas ao campo de conhecimento, de condições locais de pesquisa, das motivações dos pesquisadores e das relações entre condições externa, interna e interpessoais, que incluem relações de poder. A variabilidade da trajetória se dá ao se considerar o conjunto do campo em escala nacional e em escala local. As continuidades e descontinuidades são evidências do desigual e combinado processo de produção de conhecimento científico. A trajetória da geografia brasileira evidencia isto. Continuidades e descontinuidades manifestam-se de diferentes modos, incluindo a continuidade de periódicos, a exemplo do GEOSUL e do Boletim de Geografia Teorética ou ainda do Boletim Paulista de Geografia, e o desaparecimento da Revista Brasileira de Geografia (1939 a 1995) ou ainda as trajetórias de núcleos locais da AGB, exemplificado com o do Rio de Janeiro. Continuidades e descontinuidades se fazem sentir em sub-campos e seus temas. A geografia urbana constitui-se em exemplo de sub-campo marcado por continuidade ascendente, sendo o mais bem organizado da geografia brasileira. Contudo, em seu interior, há descontinuidades quando se compara os estudos sobre a rede urbana e aqueles voltados para o espaço urbano. O primeiro deles exibe descontinuidade, enquanto o segundo, mais recente, caracteriza-se pela continuidade. A geografia econômica, por outro lado, apresenta- se como um sub-campo marcado por descontinuidades, a despeito da importância das transformações econômicas que o país vem passando, sobretudo a partir de meados da década de 1950. É verdade que muitos estudos de geografia agrária poderiam ser enquadrados como de geografia econômica e, nesse sentido, a observação se aplica mais aqueles estudos voltados para a geografia das indústrias e do comércio. A denominada geografia teorético-quantitativa é outro significativo exemplo. Entre 1968 e 1977 aproximadamente, a revolução teorético-quantitativa no Brasil gerou grupos de pesquisa em Rio Claro (UNESP) e no Rio de Janeiro (IBGE) tendo sido criados na primeira cidade uma associação (AGETEO – Associação de Geografia Teorética) e um periódico (Boletim de Geografia Teorética). Contestada que foi os geógrafos desta perspectiva produziram muito, mas a partir dos anos 80 verificou-se uma diminuição no impacto, chegando mesmo a desaparecer entre os geógrafos do IBGE. A descontinuidade se faz presente quando, a partir dos anos 90 surge e se desenvolve, sem as severas críticas feitas aos geógrafos de Rio Claro e do IBGE, o SIG (Sistema de Informação Geográfica), um conjunto de técnicas associadas a programas de computação, que realiza inúmeras operações geograficamente referenciadas. Trata-se, assim, entendemos, de um renascimento da tradição positivista e neo-positivista na geografia. Muitos que adotam o SIG desconhecem suas raízes e o aplicam sem preocupações teóricas, como meras, inocentes e úteis ferramentas. O movimento crítico na geografia brasileira, iniciado em 1978, perdeu o fôlego na década de 1990, mas reaqueceu mais recentemente com a criação de grupos de estudos dedicados aos movimentos populares, a exemplo do NUPED (Núcleo de Estudos e Pesquisas de Desenvolvimento) no Rio de Janeiro, e do grupo dedicado ao estudo do gênero e sua espacialidade, tema escassamente considerado anteriormente. As continuidades e descontinuidades manifestam-se de diversos modos, como já afirmado, necessitando de estudos acurados e profundos sobre os diferentes sub-campos da geografia brasileira. As reflexões sobre esta temática nos permitiram sugerir uma tipologia de continuidades e descontinuidades:
• continuidade ativa e ascendente;
• continuidade sem expressão, à margem;
• descontinuidade fragmentada, com inúmeros hiatos;
• descontinuidade temporária, com uma única interrupção.
A sugestão acima, muito provisória, procura descrever a intensidade e o ritmo do processo de produção do conhecimento.

CRESCENTE COMPLEXIDADE PARADIGMÁTICA

A trajetória da geografia brasileira caracterizou-se por crescente complexidade de paradigmas, na qual matrizes distintas, antagônicas ou complementares, foram sendo incorporadas, gerando no começo do século XXI, um nítido e enriquecedor pluralismo. Reconhecemos que este pluralismo é saudável e nele residem, em parte, motivações para o debate e a possibilidade de avanços na geografia brasileira. O monismo paradigmático é nefasto e tende a levar à decadência aquele campo da ciência que se manteve atrelado a um único paradigma, incontestável e não raras vezes transformado em retórica da verdade. Em outras palavras e resumidamente, as diferenças são bem-vindas. Sob a influência da geografia francesa a geografia brasileira nasceu com o propósito de ser vidaliana. Tanto na USP (1934) como na atual UFRJ (1936) ou no IBGE (1939) foram geógrafos franceses, Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines e Francis Ruellan, que fundaram a geografia brasileira. O monismo vidaliano, apreendido sem a densidade da proposta de Paul Vidal de La Blache, foi largamente dominante até 1956. O Congresso da UGI (União Geográfica Internacional) realizado na cidade do Rio de Janeiro, colocou os geógrafos brasileiros em contato com outros modos de ver a geografia, ainda que predominantemente francesa. Jean Tricart, Pierre George e Michel Rochefort, entre outros, trouxeram novos aportes à geografia urbana e econômica. A complexidade se põe em marcha. A partir de 1970, aproximadamente, verifica-se um progressivo movimento de complexificação paradigmática na geografia brasileira, já em processo de diversificação iniciado após 1956. Com cerca de 15 anos de atraso a denominada revolução teoréticoquantitativa desembarca no Brasil. Polêmica que foi, a inovação tardia possibilitou uma crítica à perspectiva vigente, marcada por uma visão excepcionalista, e a adoção de métodos matemáticos e estatísticos. O uso de modelos formais e a preocupação com leis, princípios e conceitos constituíram-se em avanços e em pontos de discordância. O Boletim de Geografia Teorética é uma criação desse movimento em Rio Claro. A década de 1970 veria também o desenvolvimento de uma perspectiva crítica, fortemente influenciada pelo materialismo histórico e dialético. Este movimento de complexificação se dará no final da década, tendo como marco o Congresso da AGB em Fortaleza em 1978, congresso no qual Milton Santos reaparece após longa ausência desde 1964, quando da realização do congresso da AGB em Poços de Caldas. Os dois movimentos, nascidos em contextos políticos distintos e com propostas antagônicas, estão inscritos na história da geografia brasileira. Ambos não têm mais a força que cada um teve a seu tempo. A geografia teorético-quantitativa sobrevive sobretudo por intermédio de um mais pobre descendente, o Sistema de Informação Geográfica, enquanto a denominada geografia crítica apresenta muito mais uma postura crítica, de esquerda, do que análises solidamente alicerçadas na teoria marxista. Mas ambas compõem o quadro de complexidade paradigmática da geografia brasileira atual. Com atraso também da ordem de 15 anos, no começo da década de 1990 emerge a geografia cultural, sub-campo de longa tradição nos Estados Unidos. Na década de 1970 tanto lá como na Inglaterra emerge uma renovação que se caracteriza por privilegiar a cultura “como mapas de significados”. É na cidade do Rio de Janeiro, na UERJ, que é criado o NEPEC (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura), que desenvolve pesquisas sobre a dimensão cultural do espaço. Como inovação o movimento, à semelhança da geografia teorético-quantitativa e da geografia crítica, foi submetido a inúmeras críticas, mas difundiu-se e hoje compõe o perfil plural da geografia brasileira. Paradigmas alicerçados no positivismo (na maioria dos casos não se poderia falar em neo-positivismo), no materialismo histórico e dialético (em muitos casos um marxismo superficial) e na heterotopia que caracteriza a geografia cultural (nem sempre o conceito de cultura é clarificado, caindo-se no senso comum), definem, basicamente, a crescente complexidade paradigmática da geografia brasileira, rica, polêmica, alimentada pelos embates entre estas três visões distintas. Não se pode falar em “Escola Brasileira de Geografia”, que tem como um suposto a natureza monotônica de seu pensamento, de suas análises alicerçadas em um único paradigma. Pode-se falar em Geografia Brasileira, que teve uma trajetória que partiu do monismo para chegar ao pluralismo. Neste pluralismo convivem, em maior ou menor grau, conceitos e formulações teóricas advindas de fontes diversas, expressas nas contribuições de autores, entre outros, Bakhtin, Barthes, Cassirer, Castoriadis, Deleuze, Dilthey, Durkheim, Eliade, Engels, Foucault, Geertz, Gramsei, Hall, Heidegger, Lefébvre, Lenin, Marx, Merleau-Ponty, Panofsky, Weber e Williams. A lista está longe de ser completa, mas os nomes aqui mencionados eram desconhecidos, senão por todos, pela grande maioria dos geógrafos brasileiros anteriormente a 1970. Há mesmo textos que fazem aquilo que Geertz denominou ‘mistura de gêneros’, isto é, co-existência em um mesmo texto de matrizes e autores distintos mas que, na perspectiva rizomática da ciência, possibilitam complementaridades enriquecedoras.

A GEOGRAFIA DA GEOGRAFIA BRASILEIRA

Uma dada trajetória não envolve apenas o tempo, uma diacronia. Envolve também o espaço, adquirindo assim uma espacialidade. A trajetória é simultaneamente temporal e espacial, sendo dotada de uma espaço-temporalidade. Mas a lógica desta espaçotemporalidade é complexa, revelada por complexos mapas de difusão espacial, no qual os pontos de irradiação e recepção apresentam tamanhos e densidades distintos, assim como datações que não seguem nenhum modelo pré-estabelecido. Este eixo justifica-se com base na crença de que “a geografia está em toda parte”, conforme disse Denis Cosgrove, embora nem sempre sejamos suficientemente geógrafos para assim perceber, acrescentaríamos, parafraseando Bruno Latour. Dois focos iniciais, São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores cidades do país, a primeira em ascensão econômica e a segunda a capital política do país, constituíram-se nos pontos de partida da espacialidade da geografia brasileira. A irradiação foi lenta, tendo como base a formação de geógrafos nestes dois centros que em breve iriam participar senão da criação de outros departamentos, como membros do corpo docente paulistano e carioca. Neste processo de difusão a preponderância da USP é inconteste, em parte, devido à existência, já em 1945, do curso de doutorado nessa universidade. A difusão a partir da USP prossegue nos anos subseqüentes, dada a força de seu quadro docente. Criam-se departa- mentos de geografia a partir de geógrafos formados por aqueles que 10 ou 20 anos antes estudaram na USP. Há, assim, uma temporalidade na espacialidade da geografia brasileira, podendo-se falar em focos iniciais, centros de primeira geração e centros de segunda geração. O Rio de Janeiro aparece como foco inicial secundário, cuja força é menos intensa e mais recente. Isto se deve, em parte, à mais tardia criação de seu curso de doutorado apenas em 1992. Há, contudo, focos criados autonomamente, independentes de São Paulo e Rio de Janeiro. Salvador e Recife são os melhores exemplos. A difusão de cursos de Geografia prosseguiu para outras metrópoles e capitais estaduais, a seguir espraiando-se para cidades menores, capitais regionais em muitos casos. Dois períodos caracterizam essa difusão. O primeiro, de 1934 a 1968, foi lento, enquanto o segundo, após a reforma universitária de 1968, caracterizou-se por enorme rapidez. Esta rapidez, por outro lado, caracterizou a criação de programas de pós-graduação em Geografia, que teve grande salto a partir dos anos 90. Neste processo metrópoles regionais, capitais regionais e mesmo centros menores foram beneficiados com cursos para os quais nem sempre estavam adequadamente preparados. Manaus, Santa Maria e Maringá são exemplos de metrópoles (Manaus) e de capitais regionais (Santa Maria e Maringá) beneficiados. A difusão dos cursos de pós-graduação também beneficiou cidades menores, a exemplo de Francisco Beltrão, Paranavaí, Catalão e Três Lagoas. Os efeitos qualitativos desse processo de difusão estão para ser avaliados, para isto não se prendendo aos modelos de avaliação do CNPq e da CAPES. Levanta-se a temática da formação de redes de geógrafos, a exemplo do GEU (Grupo de Estudos Urbanos) do grupo que estuda as cidades médias, do NEPEC (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura) e NEER (Núcleo de Estudos sobre Espaço e Representação). Que espacialidades foram criadas e o que significam? Estas redes são as substitutas das conexões regionais que haviam na geografia brasileira? Qual a estrutura de poder que alicerça estas redes?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interpretação acima apresentada não é a única possível. A perspectiva construcionista, que dá forte crédito à imaginação, viabilizando a polivocalidade, possibilita outras interpretações nem melhores nem piores, mas enriquecedoras pelas diferenças que cada uma contém. A trajetória da geografia brasileira pode e deve ser pensada por diversas vozes, revelando que a objetividade aparente transforma-se em inúmeras subjetividades, produzindo interpretações que traduzem olhares diferentes e mutuamente enriquecedores. Indiquemos, para finalizar este pequeno texto, alguns pontos da trajetória da geografia brasileira que julgamos pertinentes de análise. Outros pontos podem ser apontados.
• O papel dos estrangeiros na formação, consolidação e mudanças na geografia brasileira.
• As condições, atores e meios pelos quais mudanças paradigmáticas ocorreram na geografia brasileira.
• A contribuição de Milton Santos para a geografia brasileira.
• A trajetória específica de sub-campos da geografia, a exemplo da geografia econômica, geografia política, geografia do turismo e geografia cultural.
• O confronto entre Rio de Janeiro e São Paulo pela hegemonia na geografia brasileira.
• O embate pelo controle da geografia brasileira, ou o papel de ‘coronéis’,‘mandarins’ e ‘gurus’.
• Os impactos da política de incentivos do CNPq e CAPES sobre a produção geográfica brasileira.
• O papel da Associação dos Geógrafos Brasileiros e da ANPEGE na construção da geografia brasileira.
• As relações entre a geografia da academia e a da formação do cidadão comum.


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