segunda-feira, 9 de abril de 2012

ENTREVISTA COM O PROFESSOR CARLOS AUGUSTO FIGUEIREDO MONTEIRO

Revista Discente Expressões Geográficas (EG): Para começar, o senhor poderia comentar um pouco sobre a evolução do pensamento geográfico brasileiro ressaltando a forma como sua obra nesta se insere?
Carlos Augusto Figueiredo Monteiro (CM): Eu me considero um geógrafo brasileiro da segunda metade do século XX, atualmente procurando encerrar uma carreira que, ultrapassando os 80 anos de idade e 60 de militância na Geografia que se faz no Brasil, há que recorrer a uma visão sumariada e sintética. Quando ingressei no Curso de Geografia e História na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, graças a Fundação das Faculdades de Filosofia no Rio de Janeiro e em São Paulo, já estávamos na vigência de uma “geografia científica” há um decênio. Além da Geografia praticada na Sociedade Brasileira de Geografia e nos Institutos Históricos e Geográficos, da Nação e dos Estados vigorava, naquele então, uma “geografia científica”, tutelada pela Escola Francesa podendo ser rotulada pelos superiores mestres Vidal de La Blache e Emmanuel de Martonne. Estudando Geografia e História (1947-1950) e trabalhando como auxiliar de Geógrafo (1948) no Conselho Nacional de Geografia do então Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (obra da Ditadura Vargas, de 1937), desfrutando de uma Bolsa de Estudos do Governo Francês em Paris e Rennes (1951-1953) iniciei minhas atividades num período de expansão dessa “nova” Geografia que progredia no Brasil graças à ação tríplice das Faculdades de Filosofia, do Conselho Nacional de Geografia do IBGE e da Associação dos Geógrafos Brasileiros. A primeira “formadora” de Geógrafos; o segundo acolhendo profissionalmente aqueles que praticavam uma ciência cuja pesquisa era considerada como básica para a ação governamental e ligada diretamente à Presidência da República; e a terceira promovendo encontros anuais em diferentes cidades brasileiras durante os quais se incorporavam tanto praticantes das ciências afins como da Geografia Tradicional, incorporando-se, como “agebianos”, à nova geografia. De volta da França tive a oportunidade de, como filiado ao IBGE, ser colocado à disposição do Departamento Estadual de Geografia e Cartografia do Estado de Santa Catarina ao mesmo tempo colaborando como “catedrático interino” de Geografia Física, na recém criada Faculdade Catarinense de Filosofia, obra do educador Henrique da Silva Fontes na capital “barriga verde”, com vistas diretamente dirigidas à implantação de uma universidade federal na capital catarinense. Ali atuei de outubro de 1955 até março de 1960, trabalhando proveitosamente tanto no D.E.G.C. (Organização do Atlas Geográfico de Santa Catarina – 1958) quanto na formação das três primeiras turmas de geógrafos e professores de Geografia. Os anos 50 assistiam a três eventos importantes, tanto para mim quanto para a Geografia. Minha atuação em Santa Catarina (1955-59); a separação dos cursos de Geografia e História nas Faculdades de Filosofia (1957) e a realização do Congresso Internacional de Geografia promovido pela União Geográfica Internacional, no Rio de Janeiro. Este evento realizado pela primeira vez no hemisfério sul, pela sua organização como pelo desempenho dos geógrafos brasileiros, representou um verdadeiro marco demonstrativo de uma afirmação da Geografia feita no Brasil. Para o meu histórico, minha transferência de Florianópolis para Rio Claro, onde atuei de 1960 a 1964, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, um dos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo, coloca o ano de 1960 como a fase inicial de minha carreira de Geógrafo (1947-1960) para a qual marca, talvez, a adjetivação de fase de Iniciação. Ao longo dela produziu-se o grande esforço na passagem da formação teórica à aplicação da pesquisa. Além da vinculação à Geografia Física, deu-se, em Santa Catarina, a “eleição” de minha área de pesquisa para a Climatologia de vez que, como docente da Física, eu me certifiquei que aquela era a área mais carente e para onde dirigi meu esforço de pesquisa imprescindível ao professor universitário. Uma carência individual não pode ser avaliada pela obra produzida, alienada da situação mundial. E neste sentido o Congresso do Rio de Janeiro é extremamente importante, sobretudo pelas profundas mudanças ocorridas após a 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Foi um congresso muito bem organizado, com excursões, com livros guias, que constituíram a verdadeira geografia regional do Brasil. Foi um grande sucesso e o delegado brasileiro junto à União Geográfica Internacional (UGI) era o professor Victor A. Peluso Júnior. Este Congresso foi uma espécie de lançamento, uma certidão de batismo de uma geografia nascente, como era aquela que estava se fazendo no Brasil e que em 1956 já deu uma prova de substância, ainda mais depois da realização do Congresso, o qual juntou figuras importantes dos principais países: franceses, ingleses e russos, os quais vieram com uma grande equipe de geógrafos. Houve cursos promovidos pelo IBGE no qual foram convidadas figuras das mais destacadas do exterior: Orlando Ribeiro, de Portugal; Pierre George de Franca, I. Sekigute (climatologista), do Japão, além de outros. Não deixaram de transparecer problemas político-ideológicos. Assim o geógrafo Jean Tricart, de esquerda, não foi convidado pelo IBGE ou Faculdade de Filosofia, o que ensejou o convite que lhe foi feito pela Universidade Federal da Bahia, por obra de Milton Santos, o que resultou na fundação do Laboratório de Geomorfologia, que tanta importância teve na Geografia daquele Estado. Foi extremante importante a troca de idéias no encontro de vários geógrafos. Nesta época o professor Aziz Nacib Ab'Saber já se destacava como geomorfólogo e os próprios geógrafos que fizeram as excursões para as cinco grandes regiões do Brasil - nessa época eu estava em Santa Catarina e acompanhei um trecho da excursão para a Região Sul, dirigida pelo professor Orlando Valverde e Dora Romariz, que me pediram para acompanhá-los durante um trecho. Fui encontrá-los na cidade de Pomerode (SC), depois eu os acompanhei até mais um pouco. Nos anos de 1960 começam a aparecer os prenúncios das chamadas “revoluções”. Como tudo na vida muda, mudam as perspectivas e os paradigmas. Antes mesmo de finalizada a Guerra Mundial (1939-45), o Tratado de Bretton Woods (1944), do ponto de vista econômico e do poder mundial, foi a passagem do bastão da Inglaterra para os EUA, já vislumbrando a rivalidade com a experiência socialista da URSS e dos chamados países do leste europeu. Então ali nasceu a idéia do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) que impulsionou o capitalismo. Depois da Segunda Guerra, com a Guerra Fria, começa também a pesquisa espacial, iniciada pelos russos (1957) e com a rivalidade com os EUA que lançam a Apolo 11 (1969). Isso é importante, pois já desde o Congresso organizado pela UGI que precedeu o do Rio de Janeiro, que foi em 1956 (em 1952 foi em Washington). Nesse congresso já se viu que havia nitidamente uma reviravolta. A preocupação com a natureza, com o meio ambiente tendia a amainar e dar ênfase mais à parte humana, social e, sobretudo, à parte econômica. Havia uma corrente nos EUA chamada Regional Science, que era ligada ao planejamento e que começa toda aquela preocupação com a “matematização”. Daí, surgem as chamadas “revoluções” que vão afetar a geografia. Embora na reunião do Rio de Janeiro tenha havido uma preocupação com a natureza ligada ao trópico; às linhas de pedra; aos processos tropicais úmidos; processos de regiões secas; o que não faz com que se apague a preocupação com a natureza. Mas o importante é que o peso do econômico passa a adquirir uma relevância maior. Então, nós atravessamos esse período, digamos “revolucionário”, que aparece com dois canais que são concomitantes, chamados de “Revolução Teorética e Revolução Quantitativa”. Teorética – termo que era criticado, pois diziam que era uma tradução literal do termo em inglês theoretical, mas que não deveria ser assim – tem a preocupação matemática que é a linguagem da ciência. Então a Geografia além de não teorizar, o que não é verdade, pois temos, por exemplo, na climatologia, associada com a meteorologia, a “teoria da frente polar”; o Wiliam Morris Davis fez a Teoria do Ciclo de Erosão: juventude, maturidade, senilidade. São abstrações com finalidade didática para explicar os fenômenos. Tanto é que depois o professor Jean Tricart vai criticar muito, dizendo que é uma série de abstrações. Claro, para entender a complexidade de um relevo atual, Davis propõe que sejam abstraídos os fatores “reais” para facilitar a compreensão dos processos. Na evolução das ciências, segundo o físico Thomas Khun há “períodos normais” e “períodos revolucionários”. Eu acho que isso é bem válido do ponto de vista da “sociologia da ciência”, mas há filósofos, por exemplo, Paul Feyerabend (que já faleceu e era um austríaco radicado nos EUA). Como físico, igualmente ao Khun, ele o contesta, mostrando que na própria Física não é bem assim, quer dizer, não é tão simples: “período normal”, “período revolucionário”. Tomam vulto as idéias de que a Geografia – ao focalizar a “personalidade” das regiões – preocupa-se com o que é excepcional; que a Geografia não tem lastro teórico; que não estiliza a linguagem matemática, que é o legítimo veículo da ciência. Esse novo momento da Geografia pode ser balizado entre nós por haver sido deflagrado entre nós no ano de 1968, quando o IBGE patrocina cursos de Geografia Quantitativa. Rio Claro, agora unidade da UNESP, encampa o teorético com produção de dissertações e teses além de revista especializada. Aliás, ainda hoje uma boa revista geográfica. Já que 1968 é o ano da minha entrada no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, além de ser um marco na evolução da Geografia entre nós, ela assinala uma outra fase em minha carreira acadêmica. Entre 1960 e 1968 houve a etapa muito benéfica de Rio Claro onde, entre outras coisas, produzi uma pesquisa de vulto, calcada no paradigma do ritmo climático, embora concentrado no fenômeno das chuvas. Graças às especiais condições de trabalho asseguradas pelo seu dedicado diretor Dr. João Dias da Silveira foi que pude adiantar meus estudos e escrever artigos dentre os quais aqueles que enfatizavam a importância da climatologia dinâmica e a eleição do ritmo como o mais conveniente paradigma para a climatologia geográfica. Ali – trabalhando com uma dedicada equipe de alunos – elaborei a obra “A Dinâmica Climática e as Chuvas no Estado de São Paulo”, concluída em 1964, e que só viria a ser publicada graças ao interesse do Professor Dr. Aziz Ab’Saber, em 1973, quando diretor do extinto Instituto de Geografia da USP. Em 1962 participei da Assembléia Geral da AGB, realizada na cidade alagoana de Penedo, onde, a convite do então Presidente Manoel Corrêa de Andrade, coordenei e produzi o relatório sobre o Baixo São Francisco, um acontecimento decisivo em minha evolução como geógrafo. Entre agosto de 1966 e janeiro de 1968 prestei uma pequena colaboração na instalação do Curso de Ciências da Terra, ministrando a disciplina de Geomorfologia. Durante minha estada em Brasília tive o ensejo de redigir minha tese de Doutorado defendida na USP no dia 23 de outubro de 1967. Creio que este lapso de 1960 a 1967 pode ser considerado aquele de AFIRMAÇÃO. O período vivido na USP (1968-1987) foi aquele mais longo (20 anos) e o mais decisivo, motivo pelo qual me aventuro a rotulá-lo de Produção. Tendo sido grande parte dele vivido na querela das “revoluções”, devo sintetizar aqui a minha atitude em face destas/das “revoluções”. Na Geografia Física, pelo menos, a ausência de teoria não era verdadeira. Lembramos W. Morris Davis com o seu “Ciclo de Erosão” em artifício teórico muito claro e lógico, encarando um processo de alta complexidade, mobilizando as necessárias abstrações para levar-nos a entender o processo da elaboração dos relevos terrestres. Em Climatologia, a Teoria Frente Polar lançada pela escola escandinava de Meteorologia é outro magno exemplo. Aliás, a propósito de minha posição pessoal frente às ditas “revoluções”, tive ocasião de produzir um texto especial para a XXV Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, realizado no Rio de Janeiro, na Cidade Universitária da UFRJ (10.07.1973), no Simpósio “A Renovação da Geografia”, sob a presidência da geógrafa Lysia Cavalcanti Bernardes e publicado no nº 6 da série “Métodos em Questão” do IGEOG-USP. Na atividade docente, ministrei quase todas as disciplinas na área de graduação, exceção àquelas de Pedologia e Biogeografia. Na área de Pós-Graduação – ao lado dos professores Ab’Saber e André Libauld – iniciamos a área de Geografia Física, tendo eu sido, por um longo período, coordenador da área, participando das reuniões da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH. Durante os 20 anos de atuação na USP tive oportunidade de concluir projetos de 13 mestrados e de 8 doutorados. Na Pós-Graduação tive ocasião de iniciar (1972) a disciplina de Introdução aos Estudos de Climatologia Urbana, uma linha de pesquisa que atraiu não só alunos regulares de Geografia, mas também colegas de Arquitetura e Urbanismo, Saúde Pública, Educação Física, etc. Na USP galguei todos os patamares da carreira acadêmica: Livre Docência (1975); Adjunção (1982); Titulação (1985). Para a Livre Docência a minha Tese “Teoria e Clima Urbano”, aprovada pela comissão examinadora e publicada pelo IGEOG-USP (1976), chamou a atenção de arquitetos urbanistas (não só de São Paulo e Minas Gerais, mas até da Bahia e do Ceará). Somente após 17 anos apareceram as primeiras teses de doutorado de geógrafos utilizando a minha proposta. Este fato ensejou a elaboração da coletânea organizada pelo colega da Universidade Federal do Paraná - UFPR, Dr. Francisco de Assis Mendonça e editada pela editora “Contexto” de São Paulo, rotulada “Clima Urbano” (2003). O interesse de arquitetos urbanistas tem continuado. Ressalto a afinidade e admiração pela competência da arquiteta Eleonora Sad de Assis, professora da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, grande pesquisadora sobre o “Conforto Térmico” e a Climatologia Urbana – graças a quem foi realizada uma entrevista especial para a revista RUA – Revista de Urbanismo e Arquitetura da Universidade Federal da Bahia em seu número 9 de janeiro-junho de 2006, entre as páginas 100 e 107. Após minha aposentadoria da USP entrei na fase final que poderia ser designada Arremate. Até 1990, dois anos após a dita aposentadoria, colaborei com os cursos de Pós-Graduação em Geografia nas Universidades Federais de Santa Catarina e Minas Gerais, ministrando a disciplina de Análise Geográfica da Qualidade Ambiental. Dando por encerrada minha carreira docente escrevi as obras “Clima e Excepcionalismo: conjecturas sobre o desempenho da atmosfera como fenômeno geográfico” (Editora da UFSC, Florianópolis, 1991) e “Geossistemas: história de uma procura” (Editora Contexto, São Paulo, 2000); obras estas contendo autocríticas e apontando novas tendências para melhoria das investigações. Para não abandonar a Geografia – após 60 anos de envolvimento – procurei dirigirme a uma temática que, em sendo importante no presente, me fosse possível realizá-la desvinculado de instituições, sem auxílios de verbas, e de meu deleite pessoal, passei a interessar-me pela Geografia Cultural, não somente naquele revival da obra de Carl O. Sauer, mas de uma nova tendência em associar Geografia e Literatura. Desta fase, iniciada após a aposentadoria (1987) resultou a coletânea “O Mapa e a Trama: ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas”, editado pela UFSC em 2002. Desde a aposentadoria, após a minha estada no Japão colaborando no curso Estudos Brasileiros, na Universidade de Tenri, província de Nara (1995-97), tenho recebido convites dos mais variados centros de estudos geográficos do nosso país, o que me tem forçado a inteirar-me do que vem acontecendo, embora seja muito difícil pela quantidade desses centros como do número de geógrafos e sua produção. Algumas dessas palestras, inclusive aquelas que sintonizam Geografia e Arte abordando cinema e pintura, foram gentilmente coordenadas pela minha prezada colega e amiga Maria Adélia Aparecida de Sousa na coletânea “Geografia Sempre: o homem e seus mundos” (Edições Territorial, Campinas, 2008). Não sei até quando terei lucidez e capacidade para produzir o Arremate Final que se vê implicado na edição de uma vultosa obra que produzi sobre minha terra, o estado do Piauí, uma série de seis volumes do qual o primeiro, intitulado “Tempo de Balaio” vem de ser editado pela Editora da UFSC. Restam cinco volumes de uma série intitulada “Rua da Glória”. Além disso, há o desafio de escrever o segundo volume da obra “O Cristal e a Chama” cujo primeiro volume, já elaborado em minha edição piloto, foi condensado em aula inaugural no ano letivo de 2005 na FFLCH-USP: “O Sentimento do Mundo entre a Ciência (Geografia) e a Arte (poesia Dramática) no Nascedouro do Brasil”. Num momento que me estou apagando e a Geografia sofre os impactos da profunda Crise Histórica que estamos atravessando, reconheço e louvo o dinamismo e a atividade geográfica em nosso país, atualmente caracterizada por uma diversificação enorme na sua temática. O único ponto que me aflige é aquele do divórcio entre o Homem e a Natureza, com a proclamação de que a Geografia é uma Ciência Social. Finalmente creio ter me esforçado em condensar uma vida de 83 anos e uma carreira de 63 anos. Uma tarefa inglória que talvez ultrapasse o interesse da revista de vocês. Mas, a partir de agora poderemos divagar sobre questões que sejam do interesse dos candidatos a geógrafos como vocês. Para “principiar” lanço a questão do Social na Geografia. “Geografia ciência social”, é uma idéia que nunca me convenceu. Certa vez disse a um grupo de alunos que a geografia é como a escola de samba do Salgueiro, nem melhor nem pior que as outras, apenas uma escola diferente. Isso tem quem critique e diz: “a geografia é uma coisa excepcional”. Eu acho que ela o é. Diz-se que a geografia é uma ciência de síntese. E o que é síntese? Síntese é resumo? Síntese é muito mais, é uma “conjunção”. Para mim o cerne da geografia é o trabalho do homem em relação com a natureza. Eu estava lendo, recentemente, um livro de filosofia do francês Luc Ferry, do qual estou gostando muito, cujo título é “Aprender a Viver”. Ele traduz de uma maneira bem didática e simples toda a evolução da filosofia; ele mostra, por exemplo, que todas as civilizações da antiguidade são ligadas à religião, devido ao medo que o homem tem, pois ele é o único animal que sabe que vai morrer. Então, ele se preocupa com a “salvação”, ele é místico e assim recorre à religião. O grande passo, o grande estopim no pensamento humano estourou, não se sabe por que, na Grécia, que ao invés de procurar suas respostas na “religião” procurou-as através da “razão”. Então, os gregos se preocupavam com o homem no universo – com a astronomia, com o espaço – ao mesmo tempo em que se preocupavam com a vida humana, com a sociedade. Heródoto, que foi pai da Geografia e da História, analisa a Grécia como arquipélago, onde estão as cidadesestado, com fundamento comercial e que entra em conflito com a Pérsia e outros. O Egito é um dom do Nilo, um deserto que é atravessado por um rio. Quer dizer, ele se preocupava com o espaço e com o homem ao mesmo tempo. Essa maldição dicotômica – “natural versus social” – pra mim não é uma maldição, é um charme da Geografia. É difícil, mas é algo fundamental e liga a Geografia, com parentesco bem persistente e legítimo, com a Filosofia. Entender o homem, o mundo, e procurar ser feliz, essa a preocupação dos filósofos, que deveria ser a nossa também. Intervenção do Prof. Ewerton Vieira Machado* (EM): Eu penso que o Prof. Manoel Corrêa de Andrade e o Prof. Milton Santos, os dois dizem que a Geografia é uma ciência da sociedade, não que ela deva trabalhar somente com a questão social, mas é a forma de como articular a idéia do trabalho, das mudanças, das transformações. Que sem a natureza não existe o trabalho e sem a ação do homem não existe a geografia; o que dá sentido a essas duas possibilidades de entender essa coisa que é plural, que só ela tem esse “charme” ao qual você se refere. Então, quando o Professor Manuel Corrêa de Andrade diz assim: “A geografia é uma ciência social”, é no sentido de entender não apenas a sociedade pela Geografia, mas compreender como é que o homem vai incorporando, pela ação cultural à natureza, porque ele também é natureza, nessas mudanças que é isso que o Sr. Nos fala: “o tempo todo está realizando verdadeiras revoluções”. O prof. Manoel tem uma visão nesse aspecto muito interessante. CM: Eu nunca encontrei dificuldade. Eu fui professor de Geografia Física, a minha climatologia era dirigida para a humanidade, para sociedade. Quando eu vou procurar o paradigma do ritmo climático não é para prever o tempo, é para ver a relação que o homem tem em face do comportamento da atmosfera. EM: Eis aí o papel inovador da climatologia e das pessoas que trabalham com essa perspectiva de climatologia e do seu papel. Porque o senhor introduziu uma visão, que pouca gente ainda não trabalha na climatologia, somente os seus discípulos aprenderam e estão exercitando e querem incluir a idéia do ritmo, da dinâmica, para fazer uma “Outra Geografia”. CM: Sobre a idéia de ritmo, as pessoas dizem que o Carlos Augusto segue o Max Sorre. Eu sigo uma crítica que o Maximilien Sorre fez da climatologia. Ele diz que para o homem essa climatologia de média, de estado médio da atmosfera sobre um lugar não tem muita significação, porque o comportamento do homem, da sociedade é um comportamento rítmico, ele trabalha, ele planta, ele colhe, ele navega, ele pesca; há todo esse entrosamento. Eu realmente segui essa crítica do Sorre, como também segui a crítica do professor Jean Tricart que disse que essa climatologia de estado médio não serve para entendermos os processos geomorfológicos. Tem que ser uma coisa mais dinâmica, assim como existe a Geomorfologia dinâmica tem que haver uma Climatologia dinâmica. Então a minha contribuição não foi inédita, tudo que eu mobilizei já tinha um “pé” aqui, um “pé” na Escandinávia e em outros lugares. O primeiro gráfico de ritmo climático aparece no manual de Arthur Strahler, só que é no nível mensal. Nos escandinavos eu vi que eles chegavam ao nível diário, mas quando eu vou eleger um ano padrão para explicar uma correlação rítmica, eu vou escolher o recorte mais miúdo possível que é o horário. Por fim, claro que a Geografia Humana sempre “dá mais ibope” que a Geografia Física, todo mundo sabe que se em uma turma for contado o pessoal da Física e da Humana, o pessoal da humana ganha longe. “Dá mais ibope”. Nem sobre a questão ambiental os geógrafos tomaram tento de que era importante e acabaram perdendo espaço para muitas outras coisas de hoje em dia: Geologia Ambiental, Engenharia Ambiental. Não é que o geógrafo fosse o dono da questão ambiental, mas ele tinha o direito, tinha a obrigação, por ser uma ciência conjuntiva, integrada, de se preocupar com a questão ambiental, coisa que ele não fez. Pode ser que agora tal situação esteja melhorando, mas eu não vejo geógrafos “na crista” desta discussão. Eu vejo meteorologista falar, etc., mas não geógrafos. Eu ainda devo insistir em um ponto. Eu penso que na geomorfologia tem pessoas que são, de certa forma, colocadas de lado. Na tese do Professor Ewerton V. Machado (outubro 2000), foi a última vez que eu encontrei Milton Santos, e em certa ocasião ele me perguntou: “Você acha que Geomorfologia tem alguma coisa a ver com Turismo?” Eu disse: “Não Milton, foram os açorianos que fizeram as 42 praias da Ilha de Santa Catarina ‘no porrete’, ‘na marretada’. Foi o homem que fez essas praias.”

FONTE: REVISTA DISCENTE EXPRESSÕES GEOGRÁFICAS


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