No lançamento de GEOGRAFIA ECONÔMICA – Anais de Geografia Econômica e Social achamos útil fazer algumas observações sobre o percurso da ciência geográfica ao longo dos séculos XIX e XX no Brasil e no Mundo. Humboldt e Ritter, dois gênios do pensamento alemão, criaram a geografia moderna na primeira metade do século XIX. A reação francesa à hegemonia alemã tardou a ocorrer, mas adquiriu dinamismo com as iniciativas de P. Vidal de La Blache, que fundou em 1891 os Annales de Géographie, revista que estimulou os debates entre as concepções francesas e alemães. Marc Bloch e Lucien Febvre, dois historiadores com sólida formação geográfica, influenciados pela vitalidade desta revista e pelo marxismo criaram, em 1929, os Annales d’Historie économique et sociale e as duas revistas tornaram-se importantes veículos de produção de conhecimentos geográficos e históricos. Os Annales de Géographie tornou-se a mais avançada revista geográfica mundial em meados do século XX, sob as lideranças de André Cholley e Max Sorre. É possível que o Encontro da UGI no Rio de Janeiro em 1956 tenha sido o auge da Geografia, tanto mundial como brasileira, mesmo com o ostracismo imposto a nomes como A. Cholley e Josué de Castro. Assentadas as bases da visão de mundo e das metodologias por Humboldt e Ritter, herdeiros de Kant e Hegel, é possível dizer que as controvérsias ocorridas depois não mudaram os rumos da Geografia até meados do século XX. Entretanto, a vitória da revolução socialista na URSS estimulou os estudos de idéias marxistas nas universidades européias nos campos da filosofia, da história, da geografia, etc, com aproximações entre geografia e marxismo na Alemanha (Wittfogel e Chrystaller) e na França (J. Dresch e P. George) e ganhou novo impulso coma vitória soviética na Segunda Guerra Mundial. Assim sendo, à altura de 1950 na Europa ocidental o marxismo era chamado a dialogar não só com a geografia e as demais ciências, mas também com os cristãos, sobretudo com a ala esquerda do catolicismo, dando origem à Teologia da Libertação na América Latina. As idéias de combinações geográficas que A. Cholley desenvolveu nos anos 40 e 50, foram heranças dos zoneamentos altimétricos e geográficos constatados por Humboldt nos Andes e corresponderam às idéias de múltiplas determinações de Marx, que visavam decifrar as causalidades dos acontecimentos humanos e foram fundamentais, no dizer de G. Bertrand à elaboração das idéias de geo-sistemas. Em outras palavras, as idéias de geosistemas já estavam implícitas nas pesquisas de campo de Humboldt. Como Kant, Humboldt enxergava a existência de dois sistemas intimamente relacionados,mas distintos, o sistema natural e o sistema social. A formação sócio-espacial de M. Santos, por exemplo, privilegia o sistema social. Esta continuidade virtuosa da Geografia, incluindo a emulação entre geografia alemã e geografia francesa, desde inícios do século XIX aos meados do século XX começou a ser erodida logo depois. Antes que essa erosão ocorresse, o Brasil viveu nos anos 40 e 50 o período de ouro na feliz expressão de M. Alves de Lima. No caso paulista, P. Monbeig desempenhou papel fundamental, pois mesmo sem ter grandes conhecimentos de Geografia física incentivou os estudos de Aziz Ab’Saber em geomorfologia e os de Ari França em climatologia dinâmica, além de pesquisar as frentes pioneiras do café, muito influenciado pelas idéias de Marc Bloch sobre os desbravamentos germânicos na Idade Média e orientar M. C. Vicente de Carvalho (Litoral Paulista e o Porto de Santos) e Nice L. Muller (Sítios e sitiantes do Estado de São Paulo), além de estimular pesquisas de Caio Prado Júnior sobre as implicações urbanas do sítio e da situação da cidade de São Paulo. Assim sendo, nos anos 50 foi possível publicar a monumental geografia da Cidade de São Paulo. Como se vê tratavam-se de estudos sobre a natureza e a sociedade, agora subestimados em favor dos estudos do espaço, resultando em textos fragmentados, como apareceu em publicação recente sobre a Metrópole paulistana, da USP, que lembra um verdadeiro “samba do crioulo doido”. Deve-se dizer que a doença “espaciológica” é muito maior na Geografia humana do que na Geografia física, o que empobreceu nossa visão da sociedade.Assim, a Geografia brasileira, que havia alcançado nos anos 50 e 60 a maturidade e por vezes ultrapassava o que se fazia no centro do sistema, com Aziz, CA. Figueiredo Monteiro, Milton Santos entre outros, passou a sofrer várias ondas de recolonização, coma “quantitativa”, o marxismo de fachada e o pós-modernismo. Voltando à Geografia européia, é interessante lembrar que ela preservou sua vitalidade até meados do século XX, em grande parte, pelo seu apego às raízes e pelo seu conservadorismo, sobretudo no caso francês. Enquanto a História foi excessivamente história política no século XIX e foi rejuvenescida pelos Annales d’historie economique et sociale, a Geografia de Humboldt e Ritter nasceu fortemente com pés na terra, isto é, com raízes nas bases naturais e no trabalho dos homens e continuou com estas características, aperfeiçoadas pelas influências marxistas acima referidas. No após guerra (1945), as divergências na História passavam a ser principalmente de interpretação dos fatos, enquanto a Geografia foi envolvida por vendavais maiores e mais perigosos. A erosão da Geografia começou na Europa durante os chamados Trinta anos gloriosos, correspondentes aos “milagres” econômicos da Alemanha, França, Itália, etc, ao mesmo tempo em que também se iniciou a erosão do “marxismo ocidental” dos filósofos e sociólogos acadêmicos, como observou Perry Anderson. O crescimento econômico permitiu a elevação do nível de vida popular e criou uma sociedade de consumo de massas, que só existia anteriormente nos EUA, e que provocou o crescente aburguesamento dos trabalhadores, o enfraquecimento dos movimentos políticos, sociais e culturais, além do surgimento da sociedade do espetáculo, na qual a verdade cede lugar à aparência e se faz o jogo para “agradar” a platéia, agora consumista e não mais crítica. Os milagres econômicos europeus (1948-1973) se apoiaram em planejamentos keynesianos, que supervalorizavam os conhecimentos dos economistas e usavam de maneira subalterna os conhecimentos geográficos. Assim, nos anos 50 P. George encaminhou alguns discípulos ao Ministério da Construção francês para estudos de redes urbanas, enquanto J. Tricart nos anos 60 realizou estudos geomorfológicos para uso da construção de rodovias, para citar dois exemplos de fragmentação. Diante desta nova realidade, a ciência geográfica não enfrentou os desafios de aprofundar sua visão teórica de si mesma (geo-sistema e formação sócio-espacial como paradigmas interpenetrados, etc). Os avanços das especializações tornaram impossível, dada a enorme variedade de campo de estudos, abarcá-la individualmente, como foi possível a Humboldt e até recentemente a J. Tricart e alguns outros. Uma falsa saída foi embarcar no empirismo abstrato da quantitativa, usada para ajudar o planejamento, na qual o natural e o social foram reduzidos à simples organização do espaço, em uma espaciologia paupérrima. No interior da sociedade do espetáculo, geógrafos subalternos ao poder político e às ciências mais agressivas, e animados por um dinheirinho extra, foram procurando novas “saídas” conforme a direção dos ventos e das modas (marxismo de fachada, por exemplo), abandonando as “ultrapassadas” experiências positivas acumuladas até meados do século XX. Na verdade, são elas que devem ser retomadas numa proposta de rejuvenescimento da nossa ciência, como discutiremos adiante. A perda do dinamismo da Geografia Humana coincidiu com o enfraquecimento do “marxismo ocidental” e da esquerda européia nos anos 1960-70 e como a revolução foi saindo da ordem das possibilidades, H. Lefebvre e M. Castels voltaram-se para questões mais amenas, como a reprodução da força de trabalho (habitação, etc.) e inspiraram os “novos” estudos de geografia urbana. É verdade que M. Castels enveredou, mais tarde por caminhos mais sérios. Sob influência de H. Lefebvre, a geografia urbana deixou de se interessar pelos fenômenos econômicos importantes, tratados anteriormente. Para exemplificar, a industrialização ou a desindustrialização passaram a ser temas marginais, juntamente com os processos profundos que animam o urbano. Os estudos habitacionais, como condomínios fechados, conjuntos populares, verticalização, etc., passaram a ser mais valorizados, excluindo outros temas. Com a subordinação da geografia urbana à temática da reprodução da força de trabalho é possível entender por que D. Harvey considerou todas as grandes cidades do mundo, NovaYork ou Rio de Janeiro,Londres ou Dacca, Paris ou Dakar, semelhantes, com problemas comuns, pois todas têm milionários e ricos, classes médias, pobres e miseráveis. Descartou as formações sociais distintas e a perspectiva mundial centro periferia e assim desconsiderou as dimensões gigantescas da função bancária de Londres, hipertrofiada, contrastando com o fechamento da bolsa de valores do Rio de Janeiro, como fenômenos opostos e igualmente importantes para a análise urbana. O vendaval que assolou a Geografia continua a se manifestar e as fragmentações afetaram inclusive as antigas boas relações entre as Geografias física e humana, como se o sistema natural não incorporasse o social ou a formação social não abrangesse a natureza.Alguns geógrafos da área humana passaram a desconsiderar o natural, antagonizando mesmo a Geografia física. Nós acreditamos que a Geografia estuda os fenômenos físicos, biológicos e humanos na superfície da Terra, conectados e combinados, como é plataforma de outros geógrafos (J.AMatthews e D.T Herbert: Unifying geography: common heritage, shared future, 2004), trazidos ao nosso conhecimento por C.A. Figueiredo Monteiro, e foi preocupação de F. Braudel pouco antes de morrer, ao cobrar um retorno à antiga grandeza da Geografia. As dificuldades também se situam na mudança da preocupação dos intelectuais com o destino das suas respectivas disciplinas, pois se há um esforço positivo de alguns, também há uma crescente postura de individualismo neurotizado de outros. No caso brasileiro surgiu um novo mandarinato de professores subalternos aos órgãos governamentais de financiamento, constituído de verdadeiros yuppies que incentiva uma política de poder mais do que uma política cultural, aceitando produções “gastro-intestinais” dos “amigos”, para usar a expressão de M. Santos, e que constitui um enorme obstáculo à renovação da Geografia. Ao longo da segunda metade do século XX é possível dizer que a Geografia Econômica tenha sido a mais atingida pelas fragmentações e mudanças de enfoque da nossa ciência. Entretanto, os desafios existentes devem nos estimular a retomar o antigo caminho aberto pelos fundadores da Geografia. Não devemos nos esquecer que Humboldt realizou uma brilhante geografia econômica no Ensaio político da Nova Espanha (México) e também no estudo sobre a ilha de Cuba, com surpreendentes resultados. P. Monbeig, um dos fundadores da Geografia brasileira, fez excelente geografia econômica em Pionniers et planteurs sobre as frentes pioneiras do café. Não devemos nos esquecer dos numerosos mestres estrangeiros de meados do século XX, como J. Chardonnet, J. Gottman, L.Waibel, Y. Saonchkine (URSS), entre outros e dos mestres brasileiros, como Orlando Valverde, Josué de Castro, Dirceu Lino de Mattos, Manuel Correia de Andrade, entre outros. A Geografia econômica é um enorme cruzamento de geografia, história e economia e por isto escolhemos como patronos, que nos inspirem na luta, Ignácio Rangel (1914-1994), André Cholley (1886-1969) e Marc Bloch (1876-1944), que conseguiram reunir, em graus variados geografia, história e economia e defenderam suas idéias e convicções mesmo com a morte. Estamos certos de que os caminhos que eles percorreram e as luzes que lançaram nos ajudarão no percurso que estamos começando.
Armen Mamigonian
José Messias Bastos
Armen Mamigonian
José Messias Bastos
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